Piadas, poemas e porradas sobre o mundo das coisas e as coisas do mundo. Uma visão desconcertante de tudo o que se imaginava consertado. A prova acabada de que a vida é uma batalha inútil... miltonritzmann@bol.com.br
sexta-feira, 3 de junho de 2011
Sangue e lágrimas na Plaza de Toros de Las Ventas
Faz uma cara que não venho aqui. Cheguei segunda-feira da minha viagem pela Europa. Desta vez, eu me atrevi a fazer alguns programas alternativos. Vôo São Paulo/Madri. Hospedagem num hotel localizado na Gran Via, coração da capital espanhola. Primeira noite, fui ver Los Miserables, no teatro Lope de Vega, quase em frente ao meu hotel. Uma montagem e tanto. Victor Hugo aprovaria. Valeu os 90 euros do ingresso, que paguei me esvaindo em lágrimas de sangue. A maior parte do elenco é de gente nova, mas muito talentosa. Música, cenário e iluminação perfeitos. Aproveitei para me abastecer de víveres culturais.
Outra aventura: caí na farra na Festa de San Isidro, que é o padroeiro de Madri. Uma comilança sem fim nas barraquinhas que lembram aquelas coisas de quermesse do interior brasileiro. Queima de fogos, reza e procissão para o santo e a curiosa dança do "chotis". Com meu espanhol de contrabandista, acabei me enturmando com nativos e um grupo de brasileiros que vivem em Londres. Cheguei no hotel já amanhecendo e fiquei mais de dez minutos tentando abrir a porta do quarto errado. Só parei quando o dono do quarto se levantou e me disse um insulto qualquer em uma língua que me pareceu alemão.
No domingo, 15 de maio, o grande dia. Em companhia de uma amiga fotógrafa, toda metida com sua Nikon D200, lentes soberbas e outros que tais, fui para a Plaza de Toros de Las Ventas. Sim senhor, uma legítima tourada! Para me proteger do sol, um chapéu tipo panamá. Eu me senti um verdadeiro Hemingway, cuja foto está na parede, logo na entrada, juntamente com outros famosos que foram lá ver a peleja entre touros e toureiros, como Charlton Heston, Sofia Loren e tal. Minha amiga, deslumbrada, não parava de fotografar e dizer: "Geeeeente, é muito lindo!". Entram ou toureiros. "Geeeente, é muito lindo!". Começam as primeiras lidas. O povo grita "Olé!". Minha amiga: "Geeeeente, é muito lindo!". Entra um cara num cavalo com adornos coloridos, empunhando uma lança. "Geeeente, é muito lindo!". O touro parte para cima do cavalo e mete os chifres em direção à sua barriga. Os chifres parecem enroscados na capa estofada que protege o cavalo. O homem pega a lança e crava nas costas do touro, que sai cambaleando e se esvazindo em sangue. Minha amiga fica muda. O touro, meio com cara de quem descobriu, no meio da festa, que entrou numa lasca duma fria, reluta um pouco, depois parte em direção ao toureiro. "Olé!", grita a plebe ensandecida.Depois de vários passes em que o toureiro, com o auxílio de uma capaz, faz o touro de tonto, vem o bandarilheiro. Esse é corajoso! Ele se posta em frente ao animal. Quando este parte em sua direção, o bandarilheiro dá um salto e crava bandarilhas no lombo. As bandarilhas são hastes enfeitadas com papel colorido. Mais sangue. Minha amiga, muda, agora deixa de mascar o chiclete e fica imóvel. Vem o golpe de misericórdia: o toureiro pega uma espada e a levanta acima da cabeça. Minha amiga esbugalha os olhos. O touro parte. O golpe é certeiro: a espada entra toda num ponto acima do pescoço do animal, que sai rebusnando para o lado. Ele começa a tremer e a manquitolar, agora soltando muito sangue também pela boca. Minha amiga chora copiosamente. "Tadinho!". Pego a máquina da sua mão e começo a fotografar. O touro cai, mas ainda está vivo. Um dos toureiros auxiliares se aproxima e, com uma espécie de punhal, dá um corte seco e rápido logo atrás da nuca. O touro está morto. O povo aplaude. Entra uma parelha de três cavalos, o finado touro é acorrentado e arrastado pelos cavalos através da arena em direção a uma porta lateral. Soam as trombetas. Vai começar tudo de novo.
Minha amiga se irrita com minha frieza. E eu me irrito com ela: "Isso é uma tourada! Há milhares de anos funciona desse jeito. O que você esperava? Um chá de cozinha, com o touro e o toureiro lá no meio, de pernas cruzadas, bebericando em tacinhas e mordiscando torradas?". Entra o segundo touro, ela já não parece tão chocada. Fotografou tudo, embora sussurando "Tadinho" cada vez que o animal levava a pior. No terceiro touro, ela já se divertia. No quarto, engrossou a vaia quando o toureiro errou o golpe mortal. Já era noite quando acabou a festa. Mas aquele estranho tipo de noite da Europa, com sol frouxo e céu ainda azul às 21 horas.
A grande estrela foi Arturo Saldívar, um jovem toureiro mexicano. Morante de la Puebla, aclamado pela imprensa, teve uma atuação pífia. Fiquei pensando se aproveitam a carne dos touros mortos na arena, pois para nós, carnívoros, touro foi feito para morrer e virar picanha, alcatra, acém etc. A diferença é que alguns bois morrem de forma gloriosa, na Plaza de Las Ventas. Outros de forma infame, nos matadouros da vida. Tadinhos.
(*) A foto que ilustra este post é de autoria da minha amiga, Renata Halls.
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Golpes baixos terão resposta à altura.