quinta-feira, 31 de março de 2011

O cachorro canibal




José J. Veiga

Percebia-se que era um cachorro por causa do rabo metido rente entre as pernas, quase colado na barriga, e também um pouco por causa dos olhos, de uma tristeza tão funda que só podiam ser olhos de cachorro escorraçado. As patas não se firmavam no chão como as de qualquer cachorro razoavelmente seguro de si; pisavam a medo, apalpando experimentando. (Depois se soube que ele tinha perdido os cascos pelos caminhos, ficando as plantas em carne viva.) De onde estaria vindo, ninguém se interessou em saber; ele apenas parou ali, lamentável e infeliz, muito cansado para continuar andando. Apareceu de manhã, e quem o viu deitado numa nesga de grama debaixo do jasmineiro pensou em um cão errante, igual a tantos que cruzam o mundo em todas as direções, parando e farejando mas sempre em marcha, como se incumbidos de alguma missão urgente, cujo endereço e propósito só eles sabem; nem valia a pena providenciar comida, provavelmente ele não estaria mais lá quando a comida chegasse.
Mas aquele parecia não ter pressa ou intenção de seguir, e lá ficou deitado de lado, não propriamente descansando porque as moscas não deixavam, mas fazendo o possível por conseguir algum sossego.
Via-se que estava faminto, mas o cansaço impressionava mais, talvez devido a seu litígio incessante contra as moscas. Às vezes ele parecia pensar que pudesse acomodar a cabeça entre as patas e deixar ao resto do corpo o trabalho de repelir os inimigos. O rabo não parava de açoitar o ar, e todo o pêlo tremia repuxado pelas contrações dos músculos; mas essa estratégia era logo descoberta e as moscas concentravam o ataque na cabeça e nas orelhas. Eram tantas e tão insistentes que ele não podia ignorá-las por muito tempo: bocava o ar indignado e às vezes até se levantava de um pulo para poder persegui-las melhor - mas a dor causada pelos talos de grama nas plantas desprotegidas advertia-o de que ele não estava em condições de ser muito enérgico.
Uma criança da casa viu-o ainda no mesmo lugar lá pelo meio da tarde e levou-lhe uns restos de comida. Ele estudou o menino com olhos desconfiados e concluiu que não havia perigo daquele lado. Comeu, lambeu o prato, balançou o rabo para mostrar que apreciara a gentileza. Deve ter passado a noite no mesmo lugar, mas ninguém ouviu latidos nem uivos. De manhãzinha chamaram-no para dentro e o menino deu-lhe um banho na torneira do pátio. Ele não resistiu nem criou dificuldades, era o primeiro a reconhecer a necessidade de limpeza, sabia que um cachorro limpo leva vantagem por onde anda.
Com o banho ele começou a levantar o rabo, primeiro por ter recuperado um pouco da dignidade, segundo por suspeitar que dentro de pouco haveria mais comida. Quando um cachorro errante é levado para dentro de uma casa e recebe o luxo de um banho, a seqüência lógica é um prato de comida.
Mas aí começa também a fase difícil das relações entre cão e gente. Como esperava, ele recebeu o seu almoço; e não tendo sido enxotado, interpretou a situação como significando que seria tolerado. Mas pode um cão contentar-se com a simples tolerância? Quando se sente apenas tolerado, um cão de respeito tem dois caminhos a seguir: ou exige atenção, ou vai embora para outro lugar onde possa se impor. A retirada é sempre humilhante, ele sabe que no momento em que vira as costas começou o esquecimento - isso se não acontece o pior- nem percebem que ele se foi; muito tempo depois é que alguém indaga distraidamente, "é verdade, que fim levou aquele cachorro que andava por aí?" Farejando o ambiente ele percebeu que podia escolher o primeiro caminho com grande probabilidade de êxito.
Para começar, era preciso não exagerar na gratidão. Se um cachorro mostra muita gratidão as pessoas podem pensar que ele não está habituado com bom trato e acabam relaxando nas atenções; nesse caso não há mais esperança para ele naquela casa. A melhor maneira de impor-lhes respeito é fazê-las pensar. Quando alguém pensa, "o que é que esse miserável julga que é? O Rei do Mundo?", o cachorro pode ficar descansado que o seu lugar está garantido. Em vez de se atirar aos pés da primeira pessoa que lhe estala os dedos, o cachorro ajuizado deve mostrar uma certa frieza. Só depois que a pessoa insistir é que ele deve atender, assim mesmo sem pressa. Se não houver insistência o cachorro nada terá a perder; pelo contrário, convém sempre desconfiar das que não insistem.
Aplicando todas as suas habilidades na fase difícil dos primeiros contatos ele conseguiu fazer-se notado e respeitado. Em pouco tempo já estava dormindo onde bem quisesse, sem receio de que o pisassem ou enxotassem. Esta é a grande prova de prestígio canino: não ser tocado do lugar que escolheu para deitar-se.
E gostaram tanto dele na casa que estragaram tudo com a solicitude de amaciar-lhe a vida. Vendo-o brincar sozinho no jardim alguém lembrou-se de arranjar-lhe um companheiro menor. Pensaram que assim ele ficaria mais feliz, e de fato ficou por algum tempo. Passava horas rolando com o menorzinho na grama, ensinando-o a viver e a ser respeitado, e quem os via embolados no chão pensava: "Que graça! Até parecem irmãos!" E como aprendia depressa aquele ladrãozinho malhado!". Em pouco tempo já estava passeando de colo, aliás uma lição que o maior não ensinou. Aproveitando-se da inocência do cãozinho as pessoas da casa conquistaram-no completamente, numa inversão ridícula de papéis. Dava engulhos ver a sofreguidão dele atendendo os chamados mais absurdos, a humildade na aceitação de censuras e castigos. Aquele estado de coisas não podia acabar bem. Mais dia menos dia ...
A situação agravou-se quando começaram a tomar liberdades com o cão maior, decerto inspirados pela intimidade excessiva que mantinham com o outro. Já não o deixavam dormir onde quisesse, e não escondiam o desgosto de vê-lo dentro de casa. Ele ia suportando tudo com paciência, esperando que a loucura passasse.
Mas não paciência que resista a abusos.
Ele estava dormindo de patas pra cima no canto de uma varanda ladrilhada, que nem era no meio ou na passagem, mas no canto, ninguém podia dizer que estivesse obstruindo. Mesmo assim alguém achou de encher a bocade água e vir de mansinho eguichá-la nele. Ora, isso assusta e aborrece. Num rápido movimento rolado ele ergueu-se e ficou parado sem compreender, mas a água escorrendo pelas pernas e a pessoa enxugando a boca e olhando com olhos maldosos diziam tudo. foi uma traição mesquinha, mas mesmo assim ele achou melhor não perder a compostura, não latiu nem fêz escândalo. Retirou-se com relativa dignidade para a sombra do jasmineiro.
A idéia veio de repente, já como decisão. O ladrãozinho malhado tinha acabado de tomar banho e espojava-se ao sol a poucos metros de distância. O outro levantou-se da sombra, esticou as patas dianteiras ao comprido do corpo, como se fosse deitar-se noutra posição, mas era apenas para se espreguiçar; abriu a boca num bocejo enorme e caminhou para o pequenino. Quando esse, que estava deitado de costas dando coices para o ar, sentiu aquela pata pesada no peito, julgou tratar-se de alguma bincadeira e ainda rosnou de brinquedo. A primeira dentadas feriu-o na carne mole do ventre. Achando que a brincadeira muito bruta ele decidiu retirar-se, rosnando e mordendo o outro no pescoço, mas o queixinho novo não tinha força para fazer mal, e o outro prosseguiu com seu projeto, começando pelas partes tenras, com certeza já de cálculo para não sair perdendo caso se fartasse antes ou tivesse que fugir por motivo de força maior. Mas ninguém veio acudir, aqueles dois viviam brigando e fazendo as pazes. Quando ele começou a enjoar só restavam os ossos mais duros e uma mancha de sangue na grama. Os ossos ele caregou para longe, escondeu, enterrou; o sangue ficou como enigma para as pessoas da casa.
Se ele pensava que ia ser feliz dai por diante, deve ter omitido em seus cáculos algum elemento mito importante; porque desde esse dia ele mudou completamente, a ponto de parecer outro cachorro. É claro que as pessoas da casa interpretavam a mudança como consequência da perda do companheiro (O que não deixava de ser) e combinaram ter paciência com ele.
Dava pena vê-lo de cabeça baixa, num ir e vir incessante, sem encontrar sossego em parte alguma. Mesmo quando parecia descansar, deitado de lado em um tapete, o bojo das costelas arfando compassado, o brilho do pêlo ondulado com a respiração, podia-se ver que o repouso era aparente. Olhando bem, via-se que os músculos nunca estavam em completo descanso, havia neles uma constante trepidação, um zumbir de alta voltagem. Bastava um ruído distante, um leve toque, mesmo de uma penugem pousando, para ele saltar nas quatro patas, as orelhar armadas, os olhos furando o tempo - o que acontecia também sem nenhma razão aparente.
Por uma misteriosa repulsão as pessoas passaram evitá-lo, não lhe afagavam mais a cabeça, não lhe alisavam o pêlo, nunguém lhe amarrotavam as orelhas para ouvi-lo ganir, o que é também uma forma de mostrar a um cão que se gosta dele. Agora era só respeito, um respeito apreensivo. Às vezes ele se instalava numa passagem, parece que desejando que o maltratassem, que o enxotassem, que o humilhassem; mas o que se via era as pessoas tomarem trabalho para não incomodá-lo, se afastarem para lhe dar passagem. Não sabendo chorar ele procurava gastar a angústia caminhado sem parar, talvez na esperança de se cansar e cair de vez. E quanto mais se movimentava, mais dava a impressão de estar contido entre barras de uma jaula.

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Fonte: VEIGA, José J. Os melhores contos de José J. Veiga. São Paulo: Global, 1989.

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