quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Sete contos de mentiroso


Eu gostava de ler Fausto Wolff nos bons tempos do Pasquim. Ele parecia fazer o tipo do injustiçado, do amargurado, do cara que está disposto a enfiar o pé no mundo. mas esse era o jeito dele mesmo. Com um detalhe relevante: sabia escrever como poucos. Nada que se compare aos iconoclastas fajutos de hoje, como esse, com o perdão da palavra, Diogo Mainardi... Recomendo "O dia em que comeram o ministro" como saborosa mostra da sua lavra. Também foi tradutor de mão cheia. Em tempo: foi duas vezes candidato a deputado federal pelo PDT e perdeu. Deve ser por isso que só viria a morrer em agosto de 2008. Se tivesse ido para o Congresso, certamente teria morrido antes. De tédio.
Selecionei esse texto, que gosto muito.



1 - Não há nada mais terrível que a palavra extinção. Para quem acredita em ressurreição ela é pior que a morte. Extinção significa nunca mais. Houve várias extinções quase totais na terra. Delas sobreviveram os mais aptos. A primeira teria ocorrido entre 600 e 500 milhões de anos (o que é isso para os paleontólogos?) Naquela época viviam na Câmbria, hoje conhecida como País de Gales uns animais chamados Trilobitas embora não soubessem que assim se chamavam. Como seus fósseis foram encontrados por lá, esta extinção passou a para a Ciência como Era Câmbria. Os Trilobitas eram a forma de vida, a dominante. Parentes distantes, naturalmente, dos modernos caranguejos, tinham entre dez centímetros e um metro e meio. Estamos falando da Era Paleozóica (palaios=velho + zoon= animal). É claro que entre 4 a 3 bilhões e meio de anos (o que é isso para os paleontólogos?) já havia vida na terra. Coisinhas nojentas como organismos multifacetados de bactérias, algas verdes, vírus e protozoários mas ninguém ainda encontrou um fóssil de um bicho desses que não fosse logo descartado como cocô de pulga. Perto do fim dos tempos Cambrianos, cinqüenta por cento da vida na terra havia desaparecido e entre eles muitos tipos de Trilobitas.


Os fósseis encontrados no País de Gales em 1835 revelam que a Terra era pululada por ascendentes de esponjas, medusas, estrelas do mar, vermes, mariscos e caranguejos. Alguns sobreviveram e são comidos até hoje, outros não.. Os que desenvolveram conchas, conseguiram se proteger dos predadores mas os Trilobitas – cujo nome quer dizer três lóbulos - que durante milhões de anos não tiveram um inimigo natural, não souberam se proteger. Viviam em mares profundos barrentos e aparentemente nem antes nem depois, em toda a história da terra, nenhuma criatura teve um olho tão eficaz. Os Trilobitas não foram extintos abruptamente. Reinaram durante milhões de anos e se não houvessem sido extintos os oceanos hoje em dia seriam muito diferentes. Quando os peixes apareceram quase não havia mais Trilobitas. Deduz-se, portanto, que foram deglutidos juntamente com seus ovos, por criaturas bem mais ágeis que também desapareceram. Os Trilobitas tentaram se defender. Tentaram se adaptar criando protuberâncias e excrescências que mais os atrapalhavam que protegiam. No final, morriam mais do que nasciam até o dia em que não nasceu mais nenhum. Posso lhes garantir que o mais estúpido dos seres vivos – o homem – que mata por prazer – não teve nada com a extinção dos Trilobitas.


2 - O homem desce do taxi e abre o portão que dá para um jardim abandonado. O homem observa tudo com muito cuidado. As árvores, as plantas, os arbustos e as milhares de ervas daninhas. Finalmente chega a uma árvore podre;. Sobre ela está uma casinha de brinquedo que cai no chão e se desmancha em pó. Sobre o pó caem algumas lágrimas do homem. As lágrimas da infância não são mais visíveis no pó mas pesam tanto dentro do homem que ele cai sobre a casinha que um dia, pensou, poderia protegê-lo para sempre.


3 - Nilton Fernandes, carioca da Penha, cobria para a UPI o campeonato de xadrez em Reykjavik, Islândia e disputado por Spasski e Fischer em 1972. Depois de uma partida, um colega italiano apresentou-o ao jornalista Erik Ulfson que adorava o Brasil e convidou-o a jantar na sua casa. Depois do jantar, Erik que era casado, tinha mulher e dois filhos pequenos, convidou-o para tomar uma sauna.


Nilton disse-lhe que não trouxera calção de banho e o casal riu muito. Alguns minutos depois, Erik, mulher e filhos já estavam pelados. Nilton também ficou nu e acomodou-se num canto da sauna rezando para que a parte mais indiscreta do seu todo não cometesse nenhuma indiscrição, pois a mulher de Erik era uma daquelas Valquírias que deixariam Wagner muito excitado. Depois da sauna, ainda nus, insistiram para que o jornalista brasileiro bebesse mas ele retirou-se na primeira oportunidade.
No dia seguinte encontrou o jornalista italiano:
- Falei com Erik e ele me disse que sua mulher estava a fim de trepar contigo e que você se arrancou.
- Mas ele não gosta dela?
- Os dois se amam mas o que isso tem a ver com o sexo?
- perguntou o italiano que já vivia há muito tempo na Islândia.
Alguns anos depois Erik tentou se matar após encontrar a mulher na cama com um sujeito a quem ele não dera permissão para ela transar. Um mexicano, por sinal.


4 - Os dois homens – um de seus sessenta e o outro de seus quarenta anos – discutiam amigavelmente na sauna.
- Sinto muito mas você fracassou e este fracasso foi decisivo para a queda dos estados helenos – disse o mais velho.
- Sinto muito – respondeu o mais jovem – mas você não foi testemunha ocular da guerra do Peloponeso. Se sabe alguma coisa é sobre a guerra contra os persas.
- Sinto muito mas na minha opinião você escreve ficção, Eu pesquiso.
- Podes até pesquisar, mas sempre te esqueces de citar o velho Hecateus, de Mileto em cuja sabedoria muito bebeste..
- Sou grato a Hecateus e se não o cito é porque sua obra é por demais conhecida.
- Podes dizer o que quiseres, velho, mas meu nome será reverenciado como pai da Pesquisa.
- E eu serei reverenciado como pai da História.
Neste momento, Sócrates entrou na sauna acompanhado de um bando de jovens e de passagem disse aos dois:
- Heródoto, Tucídides, não briguem. Pesquisa quer dizer História e História quer dizer Pesquisa.
À esta altura, dirá o leitor:
- Sinto muito, Fausto Wolff, mas quando Platão nasceu Heródoto e Tucídides já haviam batido as sandálias.
E eu digo ao leitor:
- Se não há coerência entre os fatos, pior para os fatos como vociferou Nelson Rodrigues em tarde inspirada.


5 - Numa bela tarde de maio de 1845, o menino Leopold, filho do chefe de polícia da cidade austríaca de Lemberg, brinca dentro do armário entre os casacos de pele. Neste momento entra no quarto a sua tia Zenóbia com o amante. Em menos de cinco minutos, ela tira o sobretudo, o casaco, o pulôver, a blusa, o soutien, a saia, as doze anáguas, as meias, as ligas, os sapatos, o espartilho e as calcinhas que recém haviam sido inventadas. Em meio ao ato sexual que se seguiu, Zenóbia nota que o sobrinho de nove anos espiava pela fresta do armário. Interrompe a sacanagem, chama o menino, tira-lhe as calças e aplica-lhe trinta cintadas no popô. Sem o saber, Zenóbia, dona de um belo par de coxas macias, ao aplicar o corretivo no garoto que se chamava Leopold von Sacher-Masoch, havia inventado o masoquismo. O menino cresceu extraindo prazer da dor e das humilhações. Adorava ser corneado. Casou-se várias vezes e teve três filhos, aparentemente seus, para sua tristeza.


Um dos filhos de Masoch teria dito um dia à sua irmã:
- Trouxe o boletim e só recebi notas péssimas.
E a menina:
- Melhor não mostrar ao papai senão ele vai te obrigar a bater nele.


6 - Se há uma hora em que deixo a condição de agnóstico para transformar-me em deísta, é dentro de um avião e como vocês que me lêem não sabem, neste momento ando viajando pela Europa. Viajando entre Copenhague e Roma, acabado o primeiro litro de uísque e o “Pai nosso que estás no Céu” continuei pensando em Deus. No momento pré-apocalíptico que vivemos surgiu um novo bum de Deus, este mesmo que a ciência julgou ter matado quando Darwin enfiou o último prego no seu caixão. Não sei se todos esperam o mesmo Deus mas há fome de deus entre os mortos de fome, o que restou da classe média e até mesmo entre os ricos, os intelectuais e os cientistas. O deus que todos esperam deve ser sobrenatural e vir de outro mundo. A angústia e o vazio existenciais, a flor e o átomo, não são mais suficientes. O pessoal quer apertar a mão de Deus e bater um papinho com ele. A própria classe dominante, eterna masturbadora do falo do poder, está cansada de morder o próprio rabo neoliberal. Quer meter Deus entre o rabo e a boca. Dizem, por exemplo, que a rainha da Dinamarca está convencida de que fala com Deus.


7 - Há milhões de histórias na cabeça do contador de histórias. Parece, entretanto, que um cineasta louco filmou-as ou em terrível câmara lenta ou com uma câmara de nuclear velocidade. Elas se embaralham, se confundem, não fazem sentido. O contador de histórias sabe que precisa dar-lhes uma ordem não só crono como psicológica para que seus leitores se comovam, se divirtam e ocasionalmente, como ele, pensem. Os pensamentos doem e ele imagina como sua vida seria boa se não precisasse escrever; se conhecesse outra profissão que lhe permitisse viver com uma dignidade talvez até mesmo maior? Mas estava velho e tinha medo. Como era mesmo o nome daquele bar? O que diziam as pessoas? Quem era aquela moça ao fundo, tão jovem, tão dolorosamente linda, que acenava para ele que também era jovem e agora – espectador e protagonista - não podia enxergar com a nitidez dos ideais do passado? Voltou para casa e escreveu: “Há milhões de histórias na cabeça do contador de histórias...” Sentiu que havia alguma coisa de profundamente errado naquilo tudo mas não conseguia descobrir o que era, o que fora, por que todos aqueles porquesins indecifráveis esperando na noturna fila assimétrica.


8 - Esta história quem me contou foi B.Traven, um grande artista e um melhor ser humano, pois, em verdade, ninguém sabe quem foi ele, exceto eu.


No princípio do século XX um turista americano que visitava as florestas mexicanas, dispersou-se do grupo e acabou encontrando uma tribo de índios que tivera pouquíssimo contato com os bárbaros europeus. Entre os índios, o turista descobriu um que era exímio artesão. Fazia um cestos maravilhosos, dignos de figurar em qualquer museu artístico do mundo. Algo, realmente, de uma beleza inenarrável como a triste alegria de um por de sol ou uma gota de orvalho refletindo o mundo. O turista comprou um cestinho por um peso e os índios o reconduziram até sua caravana. Em Nova York, a peça artesanal foi tão elogiada que o homem decidiu voltar à aldeia indígena no México e iniciar uma produção em larga escala. Dirigiu-se ao velho artesão e perguntou-lhe quanto custava um cesto. O índio:
- Um peso.
- E dois?
- Três pesos.
O homem não entendeu a lógica e continuou.
- E cinco?
- Cinqüenta pesos.
Por mais que o gringo tentasse explicar-lhe que o preço deveria diminuir na medida em que a produção aumentava, não conseguia fazer o índio mudar de idéia. Finalmente, o cesteiro lhe disse:
- Se eu vender um cesto por dia a um peso, ainda tenho tempo para me divertir, tomar mescal, pescar e fazer amor. Se vender dois, será mais difícil, se vender três, terei uma vida triste e se vender cinco não terei tempo para mais nada.< br> - Mas você pode fazer os outros trabalharem para você.
- Estás louco, gringo? Eles me matam.


O turista começou a gritar, a vociferar, ameaçar, tremer, a babar, a fazer tal escândalo que tiveram de prendê-lo na esperança de que se acalmasse. Como não se acalmou, deram-lhe tanta mescalina que ele enlouqueceu. Acabou morrendo entre os nativos como o “bobo da aldeia.” Mais tarde outros americanos, como vocês bem sabem, apareceram por lá e abaixo de pau acabaram por convencer os índios que o capitalismo não é uma loucura.


PS - Velho quando começa a babar e volta e meia tem de correr até o banheiro para não fazer pipi nas calças, enfim, um velho como eu, não é companhia muito procurada. De quando em vez, porém, recebe alguns presentes como o que recebi do Edu Goldenberg que com seu irmão é dono do Estephaniu’s, bar da rua dos Artistas, 130 na fronteira da Aldeia Campista com Tijuca e Vila Isabel. Eles me convidaram para assinar meus livros, principalmente, o Gaiteiro Velho. Foi uma festa muito bonita. Deu até no Ancelmo Góes e creio que por isso mesmo até o Nataniel Jebão compareceu, logo ele que não atravessava o Túnel Novo há mais de cinqüenta anos. Muito obrigado de todo o coração ao Edu, à Dani sua mulher, à dona Maria sua mãe e à dona Mathilde sua avó e excelente crooner. Muito obrigado ainda ao meu guru Aldir Blanc que compareceu com seu conjunto Torresmos e Moelas absolutamente imbatível para quem gosta de música e não desses ruídos que se ouve no rádio e na TV. Alguém aí está reclamando porque publiquei oito histórias e o título fala em sete? Isso é porque sete é conta de mentiroso.

Um comentário:

  1. Paulo Fraaaaaaancis!27 de agosto de 2010 às 18:59

    Eu também curti muito Fausto Wolff. Paulo Francis, do além...

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Golpes baixos terão resposta à altura.