segunda-feira, 25 de julho de 2011

Alô, oh iniludível!



Na primeira vez que eu me dei de cara com a morte eu devia ter uns cinco anos. Houve grande alarido na minha rua, pessoas começaram a entrar e a sair de um terreno afastado, onde capim amargoso, arbustos e outros tipos de vegetação cresciam até a altura de um homem. Era um dia frio, escuro e de vento forte. Como outras crianças entravam e saíam do mato, deixe de brincar no quintal e segui na mesma direção. Fui passando pelos curiosos, passinho curto e apressado de guri abelhudo. Quando cheguei ao fim da trilha, vi com certo espanto e nojo o que atraía tanta curiosidade: dois porcos mortos, jogados um sobre o outro, moscas enormes voando sobre os salpicos de sangue que marcavam toda a área.

Na segunda vez que eu me dei de cara com a morte, eu devia ter uns seis anos. Uma vizinha adoeceu. Ela adoecia sempre, mas daquela vez adoeceu de um jeito diferente. Não sei, ninguém me disse, que mal ela tinha. Era uma mulher de meia idade, foi levada a um hospital, mas mandaram para casa. “Está desenganada”, diziam os parentes dela e os meus. As velhas das cercanias se revezavam com suas ladainhas e cantos religiosos, os familiares ali em volta, chorando. A agonia durou dias. Numa tarde, eu brincava de novo no quintal, enquanto as beatas cantavam lá na casa da moribunda: “Eu confio em Nosso Senhor/ com fé, esperança e amor...”. De repente, começou a gritaria. Os adultos da minha família correram para lá, me deixando para trás. Não tive outro remédio a não ser correr também, na mesma direção, sem saber exatamente o que estava acontecendo. Ao chegar, eu me meti entre os adultos até chegar ao leito de morte e ver o rosto magro e pálido da vizinha que acabara de dar o último suspiro. Os familiares gritavam de dor e desespero, especialmente Elizabete, a filha da defunta. Na tentativa de acalmá-la, uma cena patética: uma mulher, que ganhara bebê havia poucos dias, aproximou-se e deu a criança para Elizabete segurar. Cega pela dor, chorando e gritando, ela deixou o bebê cair e por pouco não houve outra tragédia. De repente, meu pai se aproximou, beliscou meu braço e ralhou: “O que você está fazendo aqui? Quem te chamou? Rapa já pra casa, seu moleque!”.
Em casa, amedrontado com tudo, eu me sentei na cozinha e fiquei ouvindo a gritaria, entremeada pelo cantochão interminável: “Eu confio em Nosso Senhor/ com fé, esperança e amor...”

Na terceira vez que eu me dei de cara com a morte, eu tinha de sete para oito anos. Aí meu pai já tinha vendido a casa na cidade e nós havíamos nos mudado para uma propriedade rural do meu avô. Eu estava no primeiro ano, numa escolinha que ficava num distrito, a três quilômetros de distância, que eu percorria a pé todos os dias, acompanhado pelos primos e por outras crianças das propriedades vizinhas. Havia na nossa sala uma garota cujo nome não me recordo mais. No entanto, como era muito magra, ganhou o apelido de Saracura. Um dia, alguém chegou à porta da sala de aula e perguntou por ela. Faz 40 anos que isso aconteceu, mas eu nunca vou me esquecer da garotinha de corpo mirrado, cabelinho curto, preto e liso, camisa branca e pequena saia azul, que se sentava na última carteira da primeira fila à direita. Nem vou me esquecer da forma como ela se levantou e, entre soluços que pareciam trazer toda a dor do mundo, encontrou forças para ajeitar o caderno, o lápis, a borracha, a cartilha e a régua numa sacolinha de pano. Depois, tremendo entre gemidos, saiu de cabeça baixa ao encontro daquela pessoa que acabara de servir como emissário do anjo da morte. Ninguém de nós fez qualquer coisa para consolar aquela pobrezinha, pois não sabíamos o que fazer ou dizer. Nem mesmo a professora, que já se desmanchava em soluços lá no seu canto. Só depois de ela se recompor, fomos saber que a mãe de Saracura acabara de morrer.

Desde então, tenho me deparado muitas vezes com a morte. Ela tem vindo buscar gente da família, amigos, velhos e novos conhecidos, outros nem tanto. Às vezes, quando perco o sono, fico pensando em Elizabete ou na pequena Saracura. Estarão vivas? Como lidaram com a morte desde então? Como eu teria me saído se estivesse no lugar delas, sendo golpeado tão cedo e de forma tão cruel e implacável? Pelo menos é mais fácil aceitar que também eu e a morte temos um encontro marcado. Hoje à tarde, amanhã cedo, daqui a dez ou trinta anos, quem saberá ao certo? Só o que eu sei é que ela me espreita na sombra, como um cachorro louco - cruel, infalível, inexorável.

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Golpes baixos terão resposta à altura.